Queridos pais,
eu protelei ao máximo começar a escrever qualquer coisa que fosse direcionada às pessoas responsáveis pela minha desencontrada existência nesse mundo que como mamãe diz, é muito perigoso e pagão, e por isso eu devo tomar cuidado, cuidado especialmente com as pessoas de lábia suave, que são as que mais enganam e destroem. Como eu dizia, adiei o quanto pude sim, e por incrível que pareça, não foi por puro hábito de procrastinar, não. Eu tenho receio, muito, de dizer coisas injustas ou coisas que não devem nunca ser ditas porque seria desonroso. É, mesmo quando nós sabemos que nossas vidas estão recheadas de desonra. Não vou entrar nos detalhes e expor as vezes em que quis que estivessem mortos por serem tão maus pra mim. Não vou confessar as incontáveis vezes em que chorei de dor amarga e infantil porque não podia contar o que me afligia, porque - ora essa - se o fizesse, seria castigada por ter tais atitudes e pensamentos e vontades. Na verdade eu tive que desde muito cedo ser um pouco mais adulta pra entender certas atitudes que você tomava contra mim, mãe, e que me magoaram bem fundo como magoam até hoje. Eu sei que sou impaciente e rude na maioria das vezes, e que você me repreende sempre que tem uma chance porque é isso que mães fazem, mas veja, algo aconteceu, algo de muito errado aconteceu nesses últimos anos pra que eu parasse com os presentinhos que eu lhe fazia quase diariamente, com as declarações espontâneas e os carinhos exagerados, e também com a cumplicidade que reinava na nossa relação. Me diga, você não acha que eu mudei? Eu digo que regredi, e você? Eu fico muito bem quando você está ausente, e assim prefiro na maioria dos dias, isso não te surpreende? Sejamos francas e você pode confessar que sabe muito bem que sua presença me incomoda. E quando você diz que estamos nos dando bem, por que eu sinto uma pontada de cólera? Olha, mãe, você me perdoe por ser assim tão sem-amor e fria, e interesseira, e descuidada, e não aceitar sua ajuda quando ela finalmente vem. Me perdoe também por não consolar você quando está chorando ou triste e magoada, é só que -entenda-, sou egoísta demais pra me importar com alguém mais que não seja eu. Eu quero muito lhe ver sempre bem, mas não sei se posso fazer algo pra que isso aconteça mais vezes. Você espera tanto de mim, e se decepciona horrivelmente, e imagino que pensa que deveria ter comprado um cachorro e um carro melhor ao invés de ter casado com o papai, que, olá papai, seu grande filho da puta, obrigada por me fazer sentir uma bastarda cretina rejeitada desde o nascimento. Eu nunca confio em homens graças a você, e acho que também gosto de meninas graças a você, que nunca se fez mesmo presente na minha vida, representando o mínimo que fosse a figura paterna que traz às crianças um símbolo de proteção. Eu citei você naquela carta de suicídio desprezível, na vã esperança que você pudesse tomar conhecimento dela, e sentir-se culpado até a morte pela minha morte. Sabia que outro dia eu vi um procurado da justiça na televisão, assim, integralmente semelhante ao senhor querido papaizinho? Duas coisas: perceba que ambos estão foragidos e ambos não prestam, mas eu realmente seria uma pessoa melhor se tivesse um pai criminoso a um pai covarde. Olha, eu lembro de sua cara de porco magro com bigode retrô, e sinto ojeriza. Papai, você era um artista! Como pôde sair de casa só por sair, sem uma única cena digna dos artistas fracassados? Se hoje meus genes sao meio desequilibrados, eles vieram de você. E se minha mãe diz que você quem escolheu meu nome, eu digo que você devia ser mesmo muito bobo. Aliás, o seu próprio nome é horrível, e soa da maneira mais antipática que eu já ouvi. E se quer saber, eu estou contente em não ter um pai dentro da nossa casa, pois você, mamãe, já me traz dor de cabeça suficiente, e eu a você, então, é bom que estejamos todos sem muita enxaqueca mais do que já temos. Espero que entendam o porquê de ter enrolado tanto pra escrever uma carta miserável como esta a vocês. Miséria (carta) vinda de miséria (eu), não há surpresa.
Com muito e todo amor,
Jessy.
Um comentário:
Queria muito conhecer você, sabia?
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